outras tantas madrugadas

terça-feira, setembro 06, 2005

à bruta...

Hoje, para começar, toma lá um dia com 13 horas de trabalho seguidinhas e um ridículo toque polifónico para te acordar meia hora antes.
Toma a bata, amarrotada como tu, que ontem te esqueceste de passar a ferro (ontem ainda estavas de férias...) e, ao vesti-la, o remorso dos primeiros 20 minutos de atraso.
Toma lá 5 ou 6 doentes, escolhidinhos a dedo para a rentrée, com o sorriso a desfazer-se em brackets descolados e discretas camadas de leite creme do último natal. E aceita mais um, para os próximos dois anos, porque amuou com a tua colega, ou ela com ele. Aceita também o primeiro salpico de cuspo ensanguentado, em cheio na cara, que já passa da uma hora, ainda tens duas criancinhas na sala de espera e precisas de acordar.
Toma lá as "sugestões" e o fumo do cigarro de quem vai pôr o nome no teu trabalho do congresso sem ter mexido uma palha. Não te esqueças de sorrir humildemente quando te disser que tens muito boa pronúncia. E entretanto come a sopinha de entulho que mandaste guardar na cantina há mais de três horas - assim fresquinha, não há melhor lanche...
Toma lá a angústia da viagem que ainda não conseguiste mudar e embrulha-a até amanhã, enquanto tentas convencer-te de que é impossível deprimir em Paris.
Toma lá meia hora de carro, com o Caetano a teu lado, que ainda não tinhas chorado hoje. Quando chegares terás duas "urgências" sentadas à tua espera, ao lado do primeiro doente da tarde, que já sabe que será o terceiro. É bom que respires fundo e que limpes rapidamente os olhos com as costas da mão.
Toma lá um mês de ausência devolvido em marcações fora de horas, cartas por abrir, contas por pagar e milhares de papelinhos amarelos com assuntos pendentes e dúvidas da tua nova assistente, contratada há dois meses, que te dirá, hoje, que está grávida. Pede-lhe que ligue à Ana, a dizer que não estarás em Coimbra a tempo do tal filme espanhol. Vê todos os doentes com aquele sorriso de emergência que guardas no bolso da bata, junto com a mola do cabelo, e mete tudo o resto na pasta, para resolver em casa.
Toma o João Chaves, a pincelada surrealista que faltava no teu dia. Aparecerá a meio de uma extracção, pairando junto ao tecto e escorrendo pelas paredes, oceânico e pacífico como sempre. São dez e meia da noite. Sai com ele e fecha bem a porta. Senta-o ao teu lado no carro, depois de fechares o Caetano no porta-luvas. E por amor de Deus não chores que te fica mal e o Caetano pode ouvir.
Já em casa, toma ainda as palavras dos teus amigos, cheias de sonhos, de medos, de ambiguidades. Como os amores em que andam perdidos. Como tu. Serão a última bofetada do dia. Doer-te-ão ainda mais por não perceberes por que te doem. Ou por não quereres perceber. E apertar-se-á de novo esse nozinho irritante que tens na garganta. Aguenta! Hoje não te sobrarão forças para tentar desatá-lo e, provavelmente, nunca o farás sozinha.
E agora vai dormir, que o teu mal é sono. Fica tranquila: amanhã é 3ª feira. As terças têm, no máximo, 24 horas…

6 Comments:

  • At 6/9/05 04:43, Anonymous Anónimo said…

    Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

     
  • At 6/9/05 10:41, Blogger clarisca said…

    Porque é que a puta da tristeza faz escrever tão bem?

     
  • At 6/9/05 12:05, Blogger SR said…

    Se não te conhecesse diria: "Porra, que texto magnífico". Mas como te conheço, fico sem saber se te devo elogiar ou confortar.
    Beijo. SR

     
  • At 6/9/05 14:55, Anonymous Anónimo said…

    Faço minhas as palavras de "fotoesfera", que não conheço, mas que expressam da melhor forma o que senti depois de mesmo agora ter lido este texto.
    Um beijo enorme.

     
  • At 12/9/05 12:13, Blogger mar said…

    assumidamente: gosto de ti. tenho dito.

     
  • At 15/9/05 23:00, Blogger Cruzumana said…

    "fotoesfera", não te conheço... mas não consigo resistir a dar-te os parabéns pela tua fantástica descrição poética de um dia como os outros... o texto prende-nos !
    Um abraço de um estranho...

     

Enviar um comentário

<< Home