outras tantas madrugadas

quinta-feira, outubro 20, 2005

"desejo amor"

"(...) Certo dia, em vez do habitual almoço, pediu-lhes que desenhassem umas palavras num cartaz. (...)
Até hoje, o sr. Carvalho foi o único pobre que conheci que não pedia dinheiro. Pedia Amor. Engano-me, ele desejava Amor. Há aqui uma enorme diferença. Se fosse um pedido ele teria escrito Quero Casar. Mas não era um pedido, era um desejo. E ele tinha razão. O Amor não se pede, dá-se. E, por vezes, recebe-se. É algo que se oferece. Não é uma oferta desinteressada, é certo, mas é generosa. O único interesse do Amor é o próprio Amor.
O sr. Carvalho pedia Amor mas, no fundo, o que ele queria era dá-lo. E quando é assim, não se é pobre, mas rico. Dir-me-ão que isto é uma grande laracha… Dir-me-ão, convictos, - Isso é tudo muito bonito, mas ninguém vive sem dinheiro. Talvez, mas o sr. Carvalho, que não tinha uma coisa nem outra, escolheu o Amor. Dir-me-ão que o homem era maluco. Talvez, mas não andamos nós… doidos pelo dinheiro?
Eu cá tinha pedido dinheiro. Mas isso sou eu que sou uma besta. E tenho trinta anos e ainda julgo que vou a tempo de me tornar bestial aos olhos de alguém. Pode até ser que ele apenas quisesse uma companheira; uma companhia que o aliviasse da solidão em que vivia. Talvez, mas sei perfeitamente que o que ele queria mesmo era Amor. Está na cara…
Se naquele cartaz estivesse escrito Desejo Amor em vez de Desejo Casar, não o iam levar a sério. Diriam com desprezo - Olha, o gimbras quer amor! e rir-se-iam.
Hoje o Amor não se leva a sério. Leva-se a jantar à Bica-do-sapato. E o Amor - não tendo nada a ver com arroz-de-pato - é o melhor alimento que a alma pode querer. Tem proteínas, hidratos de carbono e todas as vitaminas do abecedário. É uma salganhada de emoções. Uma sopa de letras. Com que se escreve a alma e, por vezes, se reescreve a vida.
O sr. Carvalho foi a poesia mais bonita que eu alguma vez vi sobre o Amor. Ou, pelo menos, a mais original. Não sei se ele alguma vez se chegou a casar. Ou se teve o Amor que merecia. Gostava de pensar que sim. Gostava de lhe desejar essa felicidade. Gostava, também, de lhe agradecer a lição que me deu. Ele ensinou-me esta coisa importante: que todos nós - sejamos quem formos e estejamos onde estivermos - temos sempre este dever para com o nosso Amor: o dever de procurá-lo.E, encontrando-o, o dever de tirar o cartaz para fora do casaco, para fora da alma, e dizer em letras gordas, com todas as letras, que ele é o nosso Amor."
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in DESEJO CASAR, 28.06.2003
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De facto, vale a pena reler este texto. Obrigada, A., por mo teres lembrado, não sei bem se na meia hora de conversa, se no sorriso apressado com que me expulsaste de casa... ; )