outras tantas madrugadas

terça-feira, outubro 17, 2006

back to rehearsals

Saír de casa. A pé. Descer de novo a rua como tantas vezes: sentir o mesmo entusiamo no passo apressado, o ar fresco na cara. Escutar a noite a caminho d'A Praça. Cheirá-la. Adivinhar-lhe o bailado da rentrée nos passos de quem passa. E atravessar por fim o corredor escuro até à porta da sala onde em tempos, quase sem dar conta, ensaiei também um bocadinho da vida.
Aquecer a voz. Chamá-la pelo nome em vocalizos. Dar-lhe tempo e espaço para que queira saír sozinha. Abrir a partitura sobre o braço esquerdo. Sentir-lhe o cheiro inconfundível no virar de cada página (definitavamente, o papel de música cheira muito melhor do que sabe...). Sublinhar-lhe as respirações, os pianos e fortes, os rallentandos; enchê-la de círculos e exclamações nas entradas difíceis, nas notas escorregadias... E cantar, cantar, cantar, cantar. Um olho na pauta e outro nas mãos que a conhecem de cor, firmes e discretas. Tão discretas que às vezes basta uma só para assumir o comando enquanto a outra repousa junto ao peito, talvez para sentir o metrónomo do coração.
Cantar. Sentir as notas a subir cá dentro a cada golpe dos músculos abdominais. Saborear a música a crescer, a ganhar forma. Fazer de novo parte do todo. Espantar uma vez mais todos os males. Arrepiar-me.
Desafiar em latim o eco do corredor e chegar à porta da rua com um sorriso a transbordar de colcheias do último allegro.
-- Adeus, Sr. Francisco! Até amanhã!
-- Então mas... diga-me lá: a minha amiga está de volta??
-- Estou emprestada, só por umas semanas... para matar saudades! Vamos cantar uma missa de Mozart....
-- Aaah... na Capela da Universidade, já ouvi dizer... Isso deve ser muito bonito! -- disse disfarçando a manga vazia da camisa e enterrando com a mão desirmanada a ausência da outra no bolso das calças. -- Olhe, sabe que mais? É desta que vos vou ver a cantar a sério. Ao fim de tantos anos até parece mal nunca vos ter ouvido fora daqui! É isso mesmo: dia 18 lá estarei!
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E é já amanhã. Hoje houve ensaio geral: a capela abriu as portas e por entre as cadeiras da orquestra e os estrados do coro cheirava a madeira, a transpiração e a nervoso miudinho. Não correu bem. Os ensaios gerais em véspera de concerto nunca correm bem. Gosto de acreditar que isso é um bom sinal.
Amanhã, por esta hora, começo a ter saudades de cantar.
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Mozart - Missa brevis in D, KV 194 - Kyrie

4 Comments:

  • At 23/10/06 04:21, Blogger volto já said…

    "Missão cumprida"
    Dizem que correu muito bem. Digo que me deu muito gozo. E basta.

     
  • At 23/10/06 10:20, Blogger raquel said…

    Muitas vezes me pergunto se será normal sentir assim desta forma esta falta... como se a do braço amputado do Sr. Francisco fosse. Obrigada. Sinto.me menos só hoje. Beijo. S.V.

     
  • At 31/10/06 21:57, Blogger vitorpaiva said…

    Identifico-me com todo este sentimento, a cada frase lida consigo sentí-la e arrepiar-me... Incrível como o CMUC nos marca para a vida...

    Beijinho grande parzinho,

    Bitó

     
  • At 1/11/06 02:07, Anonymous Anónimo said…

    Tenho muita pena (daquela que nos faz chorar por dentro quando ninguém vê e que disfarçamos com o sorriso mais enigmático e desapropriado que temos)de não ter ido (de corpo e alma) ao concerto, mas também aos ensaios.
    Este comment é só para te dizer que não caiu em saco roto a tua msg daquele dia e para te dizer que me revi no que escreveste. BJ

     

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